António Gervásio
Membro da Organização Regional de Évora
A 4 de Dezembro de 1961, em pleno dia – 10 da manhã –, oito destacados militantes comunistas, rompendo a forte segurança policial, fogem com êxito do Forte de Caxias num velho «Mercedes» à prova de bala, oferecido por Hitler ao ditador Salazar.
Recordamos os oito fugitivos: José Magro, Francisco Miguel, Domingos Abrantes, António Gervásio, Guilherme de Carvalho, Ilídio Esteves, Rolando Verdial (todos funcionários do Partido) e António Tereso.
Foi grande o impacto nacional desta fuga. As pessoas ficaram impressionadas: como foi possível, em pleno dia, num pátio interior do forte rodeado de taludes, GNR’s, carcereiros armados e sempre com os olhos postos nos movimentos de cada preso, chegar um automóvel e, num abrir e fechar de olhos, oitos presos desaparecerem sem os guardas terem tempo para compreender o que se estava a passar? É natural que surjam tais interrogações. Sem dúvida que jogou muito o factor surpresa e a rapidez – agir tão rápido que os guardas não tivessem tempo de pensar que se tratava de uma fuga!
Cada fuga tem a sua história. A fuga de Caxias não foi uma realização ao acaso, nem uma aventura. Ela envolve um longo trabalho colectivo (cerca de um ano), paciente, minucioso, um conhecimento profundo de variadíssimos detalhes.
Na cadeia a luta continua
Na história do Partido, na sua luta sem tréguas contra o fascismo, tiveram lugar numerosas fugas, individuais e colectivas, de quadros destacados do Partido. Recordamos a extraordinária fuga colectiva de Peniche, a 3 de Janeiro de 1960, de dez dirigentes do Partido, seis deles do Comité Central, entre os quais Álvaro Cunhal. Recordamos as corajosas fugas de António Dias Lourenço, Joaquim Gomes, Jaime Serra, Francisco Miguel, Pires Jorge, Blanqui Teixeira, Georgete Ferreira, Pedro Soares, Dinis Miranda, Américo de Sousa, entre muitos outros.
Cada fuga tem as suas particularidades, mas todas elas têm um eixo comum – o Partido e a sua cultura revolucionária. Não há fugas sem o Partido. As fugas foram sempre uma fonte de importância capital para a recuperação de quadros destacados do Partido.
O elevado número de fugas não nos deve levar a pensar que as cadeias fascistas eram calabouços frágeis de onde se podia fugir facilmente. Nada disso! A Pide introduzia constantemente medidas rigorosas de segurança. Quem passou longos anos na cadeia sabe disso. Os comunistas eram condenados a pesadas penas. E, mesmo depois de cumpridas essas penas, continuavam presos por força das famigeradas «medidas de segurança».
Recordo que os 36 membros do Comité Central, eleitos no VII Congresso do PCP em Outubro de 1974, tinham sofrido, no seu conjunto, 308 anos de cadeia! Esta brutal violência também estimulava o pensamento na fuga...
O Partido sempre deu particular atenção à formação dos seus quadros. Sempre os instruiu para que, uma vez nas mãos do inimigo, não aceitassem a prisão como facto consumado e como sendo o fim da luta. Não, na cadeia, embora em condições mais duras, a luta continuava. Se assim não fosse não teríamos tido numerosas e corajosas fugas. O Partido educou os seus quadros para que continuassem a resistência, a preparação política e ideológica, a perspectiva de fugir e explorassem todas as fraquezas de segurança da cadeia com o objectivo de retomar o posto de combate pela causa dos trabalhadores, da liberdade e da democracia. É esta a cultura de combate que aprendemos neste grande Partido.
Preparação da fuga
Nos finais da década de 50 o Partido tinha sofrido duros golpes com a prisão de numerosos funcionários. Nessa altura, muitos deles encontravam-se no Forte de Caxias. A Pide temia os funcionários do Partido e tinha razões para isso... A polícia, com receio das fugas, tinha medo de os juntar na mesma sala. Por outro lado, procurava não dividi-los pelas salas dos outros presos para impedir o trabalho de esclarecimento e organização; para não permitir que ensinassem a ler e a escrever e estabelecessem ligações entre salas, pisos e alas, etc.
Contudo, a certa altura, a Pide decidiu distribuir os funcionários do Partido pelas salas dos outros presos. Isso veio possibilitar o reforço das ligações entre salas e pisos e dar passos na direcção da fuga. Não demorou muito que a Pide voltasse de novo a juntar os funcionários numa sala do rés-do-chão que oferecia maior segurança, o que veio facilitar a preparação, uma vez que estavam todos juntos.
Um certo dia soubemos que se encontrava na garagem da cadeia um «Mercedes» à prova de bala. Esta informação teve uma enorme importância para se perspectivar a fuga. Todos os esforços se viraram para o «Mercedes». Era necessário conhecer o estado do carro, repará-lo, arranjar combustível, fazer ensaios. Colocava-se a questão: como chegar ao «Mercedes» sem levantar o mínimo de suspeita? A organização do Partido na cadeia pôs a imaginação a trabalhar. E, como se costuma dizer, para os comunistas as dificuldades só existem para serem vencidas.
A história do «rachado»
No Forte de Caxias existiam alguns presos com comportamentos fracos que, a troco de visitas em comum com familiares, apanhar sol, receber comida da família, se dispunham a fazer alguns serviços da cadeia, como limpezas e outros. A esses presos, os outros chamavam-lhes «rachados» (uma coisa que não presta). Estudando esta realidade dos «rachados», a organização do Partido na cadeia avançou com a ideia de arranjar um «rachado» fingido, um quadro sério, corajoso, capaz de assumir tarefas difíceis e arriscadas.
Essa escolha foi cair no camarada Tereso, motorista da Carris, com conhecimentos mecânicos e outras capacidades. Não vamos explicar um conjunto de situações diversas. Dizer só que levou tempo a ganhá-lo para a tarefa, pois ele não aceitava a ideia de ser «rachado» mesmo a fingir. Contudo, sendo uma tarefa do Partido, acabou por aceitá-la. A Pide, desconfiada, demorou tempo a ser convencida.
Uma das tarefas do novo «rachado» era ganhar a confiança dos carcereiros. Começou por arranjar os carros da cadeia, depois os carros do director do Forte e de alguns Pides. A sua credibilidade foi crescendo e passado tempos chegou ao célebre «Mercedes». Estudou-o, foi-o reparando e sacando combustível da cadeia. Com o andar dos tempos começou a fazer experiências, pequenas manobras no pátio do forte, ensaios que foram aumentando.
Os passos finais
Passaram-se vários meses. Os dados estavam lançados. As andanças do «Mercedes» eram vistas como normais pela GNR. Os batentes de cimento do portão do exterior estavam devidamente estudados: não iriam resistir ao embate do «Mercedes».
A fuga tinha de realizar-se antes das 10 horas da manhã, porque depois dessa hora chegavam ao portão familiares dos presos para as visitas. Estavam asseguradas medidas para não haver pessoas atrás do portão e era rigorosamente necessário que no dia da fuga os carros da cadeia e da Pide, dentro do forte, estivessem, antes das 9 horas, todos imobilizados, avariados, para não poderem perseguir os fugitivos – medida que também foi assegurada.
Estava definido quais os oito camaradas que iriam participar na fuga. A casa da guarda (GNR) ficava no meio do túnel que dava acesso ao pátio do recreio dos funcionários presos e ao portão do exterior. Junto à casa da guarda havia um gradão de ferro. Havia comandantes que tinham o túnel fechado com o gradão durante o dia, outros tinham-no aberto. No dia da fuga o túnel estava fechado.
Algumas semanas antes da fuga a Pide inventou um estratagema na escala dos recreios no sentido dos funcionários presos nunca saberem o dia e a hora certa do recreio, tudo isto com receio de fuga! Mas, passados alguns dias, descobrimos o segredo pidesco.
Finalmente chegou o dia decisivo. A 4 de Dezembro de 1961, às nove e pouco da manhã, a Pide abre-nos a porta para o recreio. Estávamos um pouco tensos. Alguns de nós pensámos: vamos sair e já não voltaremos!
No recreio iniciámos o nosso jogo tradicional de voleibol que fazia parte de outra jogada... A GNR, nos taludes, observava-nos. No nosso meio circulavam carcereiros armados..
Poucos minutos depois vemos o «Mercedes» conduzido por Tereso subindo em marcha atrás o túnel por onde iríamos fugir. O «Mercedes» chegou até junto de nós. Começámos a «protestar», os guardas muito atentos, aproximámo-nos do carro cujas portas só estavam encostadas – tudo aparentemente sereno mas muito rápido. Ouve-se o grito da senha: GOLO! E num gesto super rápido os oito fugitivos estavam no interior do «Mercedes» que, em grande velocidade, avança pelo túnel em direcção à liberdade. A sentinela não teve sequer tempo de fechar o gradão. O «Mercedes» vai direito ao portão exterior, arranca em primeira, dá uma pancada no portão que salta em pedaços! Ouvem-se tiros de metralhadora. O «Mercedes» arranca encostado ao talude do forte. Chovem tiros e ouvem-se as balas a fazerem ricochete no carro.
Os carcereiros correm em busca dos carros da cadeia, mas, para seu azar, nenhum deles quis mexer-se, estavam todos avariados! Não podiam perseguir os comunistas fugitivos...
Cerca de 10 minutos depois, os oito fugitivos estavam em Lisboa. Cada um seguiu o seu rumo a abraçar as novas tarefas do Partido. O «Mercedes» ficou a descansar na rua Arco do Carvalhão até a Pide o ir buscar...
A fuga de Caxias faz parte do património revolucionário do PCP, partido da classe operária e de todos os trabalhadores. Partido da resistência, da verdade, da esperança, da liberdade e do socialismo!
«O Militante» - N.º 280 Janeiro /Fevereiro 2006